No penúltimo dia do ano de 2014, a Exma. Sra. Presidente da República adotou, com força de leis, as medidas provisórias (MPV) n. 664 e 665, as quais, nos dizeres de suas próprias exposições de motivos, respectivamente, “realizam ajustes necessários nos benefícios da pensão por morte e auxílio-doença no âmbito do Regime Geral de Previdência Social (RGPS)” e “modernizam as políticas públicas de emprego financiadas pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para que este se torne cada vez mais efetivo no que se refere à preservação do emprego e à orientação, recolocação e qualificação profissional dos trabalhadores desempregados”.
No concreto, em síntese apertada e no dizer da agência de notícias do Senado Federal, a MPV 665
“aumenta o rigor para a concessão do abono salarial, do
seguro-desemprego e do seguro-defeso dos pescadores artesanais. Em
relação ao seguro-desemprego, atualmente o trabalhador pode solicitar o
seguro após trabalhar seis meses. Com as novas regras, ele terá que
comprovar vínculo com o empregador por pelo menos 18 meses na primeira
vez em que requerer o benefício. Na segunda solicitação, o período de
carência será 12 meses. A partir do terceiro pedido, a carência voltará a
ser de 6 meses”.
A temática da concessão do seguro-desemprego do pescador artesanal, conhecido como seguro-defeso, também foi objeto de alteração prejudicial pela predita MPV, que passou a proibir o acúmulo de benefícios assistenciais e previdenciários com o seguro. O benefício de um salário mínimo é pago aos pescadores que exercem a atividade de forma exclusiva durante o período em que a pesca é proibida. Agora, para fazer jus ao benefício, o pescador deverá comprovar uma carência de três anos a partir da obtenção do registro de pescador, carência essa que, antes da MPV 665, era de um ano. O beneficiário também terá que ter contribuído pelo período mínimo de um ano para a Previdência Social. Não bastassem tais modificações, a concessão do seguro-defeso não será extensível às atividades de apoio à pesca, nem aos familiares do pescador profissional que não satisfaçam os requisitos e as condições estabelecidos na MPV, como ocorria anteriormente.
A famigerada MPV, ainda, estabelece o aumento da carência do tempo de carteira assinada do trabalhador que tem direito a receber o abono salarial. Antes, quem trabalhava somente um mês e recebia até dois salários mínimos tinha acesso ao benefício. Agora, a carência será de, no mínimo, seis meses ininterruptos. Afora isso, também modificando a sistemática anterior (o benefício era pago na íntegra, independentemente do tempo trabalhado), o pagamento do benefício será proporcional ao tempo trabalhado, do mesmo modo que ocorre atualmente com o 13º salário.
A título de justificativa, o ministro-chefe da Casa Civil, Aloizio Mercadante, afirmou que “as medidas são necessárias para o equilíbrio fiscal do país nos próximos anos e corrigirão distorções na concessão de benefícios trabalhistas e previdenciários, detectados em auditorias feitas pelo governo”[2]. De fato, a exposição de motivos[3] da MPV 665 advoga no mesmo caminho:
Em 2013, as despesas com abono salarial e seguro desemprego somaram R$ 31,9 bilhões e R$ 14,7 bilhões, respectivamente. Por sua vez, a intermediação de mão de obra registrou um investimento de apenas R$ 117,2 milhões nesse mesmo período. Diante dessa distorção, fica claro que tão importante quanto a criação de um programa é o seu redesenho, afinal de contas, a sua própria efetividade é determinante para que o público-alvo seja revisto ao longo do tempo. Nesse contexto, torna-se necessário reduzir as despesas do FAT com políticas passivas para investir no fortalecimento das políticas ativas, pois estas têm impacto direto no aumento da produtividade do trabalhador e da economia, o que gera maiores ganhos de bem-estar para toda a população no longo prazo.
Por fim, esta medida provisória também faz alterações no seguro-desemprego destinado aos pescadores artesanais em período de defeso. O objetivo é tornar mais claro o enquadramento para fins de concessão do benefício pecuniário, diferenciando aqueles que vivem exclusivamente da pesca daqueles que exercem outras atividades profissionais.
A Nichtumkehrbarkeitstheorie ou teoria da irreversibilidade, desenvolvida por Konrad Hesse, partiria da afirmação de que não se pode induzir o conteúdo substantivo da vinculação social do Estado diretamente da Constituição, mas uma vez produzidas as regulações, uma vez realizada a conformação legal ou regulamentar deste princípio, as medidas regressivas afetadoras destas regulações seriam inconstitucionais, ou seja, haveria uma irreversibilidade das conquistas sociais alcançadas. (NETTO, Luísa Cristina Pinto e. O princípio de proibição de retrocesso social. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 101-102).
Especificamente no ordenamento constitucional brasileiro, o princípio da proibição do retrocesso social repousa implícito na assunção do estado de direito democrático e na própria cláusula da dignidade da pessoa (art. 1º, caput e inc. III, da CF/88). Ainda, no entender deste advogado, também o comando da maximização da eficácia das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (§ 1º do art. 5º da CF/88) alberga, materialmente, o predito princípio proibitivo do recuo social.
Então, em matéria de concretização de direitos fundamentais, se há um mandamento constitucional ao progresso e máxima eficacização (§ 1º do art. 5º da CF/88), há, por consequência lógica, a proibição do retrocesso, assim entendida, na hipótese vertente, a criação de óbices à fruição de determinados direitos sociais, por meio de novel regulamento sobremodo restritivo. O Supremo Tribunal Federal, em diversas oportunidades, aferiu a aplicabilidade do princípio da proibição do retrocesso, sendo relevante trazer à colação o excerto seguinte, extraído do voto da ministra Cármen Lúcia no julgamento da ADI 4543-MC/DF[5]:
Esse princípio da proibição de retrocesso político há de ser aplicado tal como se dá quanto aos direitos sociais, vale dizer, nas palavras de Canotilho “uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo... O princípio em análise limite a reversibilidade dos direitos adquiridos em clara violação do princípio da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana” (CANOTILHO, J. J. Gomes – Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 3ª. Ed., p. 326).
O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. - A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v. G.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em conseqüência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar - mediante supressão total ou parcial - os direitos sociais já concretizados.
[1] Leandro Caletti é advogado, especialista em direito do trabalho.
[2] Disponível em http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2014/12/31/medida-provisoria-endurece-regras-do-seguro-desemprego. Acesso em 27.01.2015.
[3] Disponível em http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2014/Mpv/mpv665.htm. Acesso em 27.01.2015.
[4] “9. A urgência da medida caracteriza-se pela evidente necessidade de adequar o FAT para que esse tenha assegurada a sua sustentabilidade financeira intertemporal. 10. Essas são, Senhora Presidenta, as razões que justificam a elaboração da minuta de Medida Provisória que ora submetemos à elevada apreciação de Vossa Excelência.”
[5] Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/listarDiarioJustica.asp?tipoPesquisaDJ=AP№=4543&classe=ADI. Acesso em 27.01.2015.
[6] Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/listarDiarioJustica.asp?tipoPesquisaDJ=AP№=639337&classe=ARE. Acesso em 27.01.2015.
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Artigo 7 da Constituição Federal de 1988
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Parágrafo 1 Artigo 5 da Constituição Federal de 1988
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Artigo 5 da Constituição Federal de 1988
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Inciso II do Artigo 7 da Constituição Federal de 1988
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Artigo 4 da Lei nº 7.998 de 11 de Janeiro de 1990
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Artigo 3 da Lei nº 7.998 de 11 de Janeiro de 1990
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Lei nº 7.998 de 11 de Janeiro de 1990
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Medida Provisoria nº 665 de 30 de Dezembro de 2014
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Medida Provisoria nº 664 de 30 de Dezembro de 2014
fonte: http://cttlers.jusbrasil.com.br/artigos/163233293/a-inconstitucionalidade-da-medida-provisoria-n-665-2014-em-face-da-afronta-ao-principio-da-proibicao-do-retrocesso-social
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